Entrevistando

MAURICIO NEGRO COMENTA O SUCESSO DE “GENTE DE COR, COR DE GENTE”, SUAS INSPIRAÇÕES E PROJETOS FUTUROS.

Por FTD Educação

Estimativa de leitura: 14min 15seg

11 de julho de 2022

“TRABALHAR A QUESTÃO NEGRA E INDÍGENA É UMA NECESSIDADE”. 

Mauricio Negro 

Mauricio Negro, criador da obra “Gente de Cor, Cor de Gente”, conta um pouco de seu processo criativo, suas inspirações e causas que acredita. 

Sem utilizar palavras, livro-imagem aborda a questão racial de forma lúdica e divertida, aproximando o debate de um público mais amplo, sobretudo crianças. O autor comenta suas estratégias, motivações e inquietações sobre nossa sociedade. 

Você se denomina ilustrador, escritor, designer e pesquisador. Essa combinação de atividades é uma necessidade produtiva para dar vazão às suas ideias ou há alguma das áreas que você gosta e se dedica mais? 

Evitando o romantismo, eu sou um artista bastante prático, apesar de lidar com questões que parecem tão etéreas em relação ao senso comum. Tenho uma permeabilidade às propostas e aos desafios que aparecem fora da minha zona de conforto. Toda vez que uma oportunidade dessa surgiu, acabei me aventurando. Me considero um artista. 

Tem certas ideias que precisam de ambientes específicos, onde elas se expressam melhor. Às vezes, eu carrego alguns cadernos comigo que acabam se transformando em cadernos de ideias porque eu não sou alguém que fica explorando técnicas, me aprofundando em materiais, geralmente, eu já faço pra valer. Os cadernos acabam sendo muito úteis para insights. Uma “anotação” pode vir na forma de uma imagem, é um registro, né? É uma ideia registrada. 

Muitas vezes, eu revisito esses cadernos e dali pipocam algumas ideias, que podem ser aplicadas em projetos que já estão acontecendo e que encontram uma boa acolhida em forma de música, de literatura indígena, ou de documentário, não importa. 

Trabalhar com todas essas áreas não é só uma necessidade produtiva, é de encaixe. Eu não gosto é da zona de conforto porque eu tenho impressão que a gente só tem a perder com ela, ficamos preguiçosos. Toda vez que um desafio aparece, embora haja obstáculos, quando você consegue entender aquela lógica interna e entra numa afinação correta, é muito prazeroso. Essa necessidade produtiva tem um aspecto prático. Eu sou predominantemente um artista que opera na literatura, mas eu sei que o alcance da literatura é limitado, principalmente o recorte que eu me dedico, ligado à natureza, povos tradicionais e culturas do mundo. 

O fato de trabalhar com escrita e com imagens é porque eu entendo tudo como comunicação, eu não acho que dê para separar tanto. Mesmo a questão de ser designer, que é uma espécie de regência dessas expressões, e a pesquisa, que é o que me dá subsídio. Sim, são quatro atribuições, mas que se misturam e acho que não tem como dissociá-las porque nunca sei exatamente quando estou exercendo uma coisa ou outra. 
 

Por desempenhar tantas tarefas, o trabalho acaba se tornando solitário ou há espaço para parcerias? Quais são as suas maiores fontes de inspiração? 
 

Muito pelo contrário. Essas tantas tarefas acabam me encaminhando para trabalhar em parceria, que é algo que eu gosto muito. Tem uma parte do trabalho, sobretudo criativo, que é solitário, não tenha dúvida. A criação coletiva é uma coisa muito difícil. 

Mas na produção desses trabalhos, a depender do que é, juntar diferentes experiências, olhares, é muito rico e eu prezo muito. Talvez uma das motivações para eu desempenhar tantos papéis esteja aí. Nos últimos tempos, eu também assumi funções diferentes, como curadoria: a gente tem uma galeria de arte digital, artistas que trabalham com meios tradicionais, que têm uma carreira consolidada foram convidados para fazerem parte de uma galeria de NFT, chamada V8. E, ali, a gente reúne fotógrafos, artistas plásticos, ilustradores, designers que apresentam uma coleção autoral, que vai desde a concepção de cada projeto até a fase de lançamento de cada coleção, é um trabalho coletivo. 

Da mesma forma, tem um outro projeto que, a convite do Itaú Social, eu desenvolvi juntamente com a Isabella Rosado Nunes, Daniel Munduruku e Darlene Iaminalo Taukane o Projeto Jenipapos dividido em duas fases: uma contemplando a literatura de autoria indígena e a segunda relativa à educação indígena ou as diferentes formas de educar por indígenas, em diferentes culturas. E, agora, estamos elaborando um livro que reúne os testemunhos de todos os participantes, inclusive não-indígenas, mas que tem familiaridade com a matéria. 

O que é bom é que a gente fica permeável para aprender com o outro e eu acho que não pode ter coisa melhor. Além desses projetos coletivos, Daniel Munduruku e eu somos curadores de uma exposição no Sesc Osasco, que vai juntar a produção literária de autores indígenas com artistas visuais indígenas, o encontro de duas turmas que ainda não ocorreu. A ideia é justamente essa: a gente acolher a ideia de juntar as experiências às perspectivas de pessoas diferentes e aprender com essas oportunidades que o ofício permite. 

Com relação às minhas fontes de inspiração, a “paisagem” sempre me interessa. A paisagem e o nosso lugar enquanto seres humanos nessa paisagem. Conforme o recorte e o modelo de sociedade, a gente, às vezes, lesiva essa paisagem afastando-nos dela e ou, então, integrando-nos a ela, como é o caso das comunidades tradicionais, ribeirinhos, quilombolas, indígenas e caiçaras. São inspirações para a reconciliação com a paisagem e a arte é o caminho para fazer isso. 

“Gente de cor, cor de gente” foi seu segundo livro-imagem, há a pretensão de lançar outros? Quais temas mais te agradam e que dariam ótimas obras do gênero? 

Engraçado, eu não tinha essa noção e de fato “Gente de cor, cor de gente” é o meu segundo livro-imagem, depois de “Zum zum zum”. Esses livros nascem em função das ideias. Hora basta narrar com imagens e já se conta tudo e mais um pouco, sobretudo através da sugestão, e hora é mais interessante você proporcionar o casamento entre texto e imagem, como acontece com a música popular brasileira, é uma trança. 

Eu tenho outras pretensões, sim. Tenho até mais três projetos “aguardando a vez”, projetos autorais, e outros projetos que envolvem mais gente. Acontece que talvez o único senão de desempenhar todos esses papéis profissionais que citamos é justamente comprometer essa vertente mais puramente autoral. Eu acabo tendo uma velocidade de lançamento lenta, aproximadamente um livro a cada dois anos. Às vezes, me ressinto disso, mas por outro lado aquilo que os trabalhos coletivos me proporcionam também é muito compensador. 

Os temas que mais me agradam são que eu venho trilhando ao longo desses 35 anos de carreira e que já falamos. Eu gostaria de trabalhar com o reequilíbrio da paisagem. Só que há muitos ganchos para trabalhar essa questão, através de registros pessoais íntimos ou então daquilo que está no consciente coletivo ou que é patrimônio intangível cultural brasileiro. São esses os meus pontos de referência, inclusive a minha infância, passada sempre perto da natureza, na Mata Atlântica, com as experiências que eu tive lá, aquela imersão, aquela percepção de que tudo está interligado. 

Eu gostaria de trazer também para essas novas publicações os novos olhares da própria ciência ocidental, que começa a se certificar e aferir aquilo que esses saberes antigos já traziam. Então a gente tem acompanhado convergências e isso me interessa muito: retomar os saberes na atualização dos dois lados, e eu acho que para a criança é importante também porque elas precisam de balizas melhores. A gente tem hoje um modelo de ensino que deixa de lado esses valores, que não ficam tão obsessivos pela competição, pela formação para o mercado, tão regado pelas ciências exatas e tão alheio às ciências humanas, né? Mas as crianças têm essa demanda interna e isso é fácil de perceber, mas a gente não tem abastecido-as com isso. 

Por que um livro-imagem sobre o tema racial? De que forma a ausência de palavras contribui para a fruição da leitura de “Gente de cor, cor de gente” e a reflexão sobre os temas que aparecem no livro? 

O livro nasceu a partir de um comentário de uma menina negra, que estava numa roda de amigos em frente ao meu condomínio. Ela conversava com os colegas e fez essa menção: “poxa vida, depois eu que sou de cor? Olha você aí vermelha de vergonha!”. Essa frase ficou gravada, até o dia que eu tive um impulso de fazer essa história e me dei conta que existem expressões bem conhecidas: “branco de susto”, “vermelho de raiva”, “verde de fome” e assim por diante e eu falei “aí tem um livro!”. Porque desmonta essa ideia de “gente de cor”, fala das cores das pessoas. 

Ficou claro que eu devia fazer comparativo, uma espécie de ampliação 3 por 4 em grande escala de um menino preto e um menino branco, só que sempre o branco mudando de cor a cada virada de página e de situação. Quando eu fiz o boneco – a primeira versão de um livro, uma espécie de teste -, logo me dei conta que a breve linha de texto que ficava no rodapé ao invés de acrescentar ou complementar o livro, ela subtraia, por que as imagens já tinham força suficiente sugestiva para levar o leitor a fazer reflexões. O texto seria uma espécie de limitação. 

Essa questão racial é muito sensível porque ela está de tal maneira entranhada na sociedade brasileira em particular, em função do histórico colonial que a gente teve e que acaba moldando todas as nossas relações, pessoais, profissionais, institucionais, ao ponto de as pessoas não perceberem e não se reconhecerem como racistas. Só que quando você analisa o comportamento, você as identifica. 

Ou seja, se você combater essa moçada com essa forma mais “aguerrida” talvez você cause rejeição e as bolhas não se furam e aí, eu tirei todas as frases do livro. Depois veio a ideia no editorial da FTD Educação de fazer “Gente de cor, cor de gente”, um complemento quase taoísta. 

Quando o livro começou a circular nas redes sociais e a gente preparou uma lista de influenciadores para lê-lo, eu confesso que tive receio, eu não sabia como ele seria interpretado por cada uma dessas pessoas. Mas aí, eu logo vi que algumas pessoas-chave do movimento negro comentavam de forma muito positiva e isso me deu um alívio. A gente não tem controle da própria obra quando ela tem texto, imagina, então, quando você só usa imagens e a possibilidade de leitura é múltipla. 

Depois, indo em escolas e eventos para falar sobre o livro ficou claro que ele fornece muitos subsídios para reflexão. Então, o livro funcionou principalmente porque ele não tem esse caráter de panfleto. 

Desde crianças na primeira infância até adultos com pouca leitura, o fato de só usar imagens no livro é também uma tentativa de alcançar mais pessoas e democratizar o debate? 

De fato, ao fazer um projeto com imagens, o potencial de ultrapassar as barreiras linguísticas, de repertório cultural, de faixa etária é tremendo, não tem dúvida, a gente só se beneficia desse alcance, tanto é que foi publicado também na Europa para atingir um público ainda mais amplo, fora do Brasil. No entanto, a mensagem consegue ser bem entendida e interpretada, ainda que em determinadas páginas a percepção possa ser diferente em função da cultura, mas, em síntese, o livro passa esse recado que é a reflexão acerca das construções imaginárias, das bolhas que a gente cria, de conceitos mesmo. 

A ideia de preconceito está relacionada à sobrevivência, o medo de escuro, por exemplo, vem para proteger a sua integridade, agora quando esse preconceito não é trabalhado da maneira certa ele pode se configurar uma patologia, uma doença, numa trava. Então, se o livro for capaz de levar as pessoas a pensarem sobre isso, talvez elas trabalhem melhor essa questão. Então, ele promove uma discussão. 
 

Muitas vezes, delegamos a negros e indígenas a função de combater o preconceito racial quando, na verdade, é um dever de todos nós. Nesse sentido, você, enquanto autor e homem branco, como enxerga seu papel na tentativa de diminuir desigualdades? 

Esse lance do lugar de fala, né? Quando eu participo de muitos de alguns eventos que têm um caráter afirmativo, identitário, eu costumo dizer que eu já “entro perdendo”, porque sou homem, heterossexual e branco, em tese eu já saio perdendo, porque eu carrego a pior simbologia possível. Eu não acho que seja um dever de todos nós, é uma necessidade. Nós vivemos numa sociedade regida pelo padrão branco/europeu, embora a gente não seja mais branco e muito menos europeu, a gente se regula por essa memória anacrônica desproporcional dos parâmetros do eurocentrismo e o resultado prático está aí, em todos os níveis, de uma sociedade que não consegue se resolver, não consegue dar conta da justiça social, de oportunizar tudo e todos, de se equilibrar economicamente, de compreender a sua própria natureza. 

Se formos colocar na balança, essas matrizes fundadoras, há um desequilíbrio visível, estamos perdendo. Quando a gente olha para esses povos chamados de indígenas e que são aqueles próprios de determinado lugar e que com esses lugares guardam uma relação profunda de identificação, de pertença, de comprometimento, a gente percebe o quanto essa cultura dominante na sociedade, que é normativa, ela carece de propósitos que não seja acumular posses, com viés econômico, muito esfacelada em termos de outros valores, porque as pessoas se reconhecem muito mais como consumidores e conhecem mais direitos do Procon do que os direitos humanos e seus deveres. 

Só que a gente deve inspirar mais nessas sociedades que conseguem harmonizar o tecido social com a paisagem onde vive. Acho que não é só um dever no sentido moral, a gente discutir a questão negra ou indígena, mas um dever no sentido de necessidade imperativa porque o modelo que está aí vem dando profundamente errado. Deu certo em termos de tecnologia, a gente encontrou algumas ideias interessantes, mas o custo para isso foi enorme e a horizontalidade não foi obtida. A gente continua acompanhando uma “plutocracia”, o governo dos mais ricos, e na plutocracia vira-lata não entra. E os vira-latas são aqueles que simplesmente não se encaixam no modelo. 

O meu papel aqui é o de um artista, que detecta essa imperfeição e está preocupado não é nem com o futuro, mas com o presente. O Gilberto Gil cantava que o melhor lugar do mundo é o aqui e o agora, mas pode ser o pior também. E a gente não deve se conformar, aí eu faço o que dá. 

No que você está trabalhando agora? Quais são seus próximos projetos? 

Eu estou trabalhando em um monte de coisas ao mesmo tempo. Eu venho tocando uma série de projetos, ilustrações envolvendo povos indígenas inclusive uma experiência com a Fiocruz. Venho iniciando um projeto que tem a ver com a experiência de viver na Amazônia com uma série de parceiros bem legais que espero que vingue e a gente está só no comecinho. 

Estou fechando também ilustrações de um livro do Guimarães Rosa, o próprio Projeto Jenipapos, que já falei, com a fina flor do pensamento indígena contemporâneo e com os colaboradores de fora, com as bênçãos de Conceição Evaristo, por exemplo, com a parceria na consultoria de Daniel Munduruku e Isabella Rosado e Darlene Taukane, primeira professora indígena no Brasil. 

Estou também com projetos de capas, projetos gráficos e construindo novas propostas, além da Galeria V8, que acabamos de subir a coleção do Fernando Viana. É isso. 

Mais sobre a obra, GENTE DE COR, COR DE GENTE! 

Aproveite para assistir a entrevista com o Mauricio Negro durante o lançamento em 2017. 

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