Colocando em prática Professor

Dia da Consciência Negra: professora Jéssica Valentim traz dicas de como tratar o tema em sala de aula

Por FTD Educação

Estimativa de leitura: 11min 22seg

8 de novembro de 2021

Segundo o IBGE, 56,10% da população brasileira se declara negra, tornando o Brasil o país com a maior população negra fora do continente africano. E, para gerar reflexão e visibilidade para as questões raciais, 20 de novembro celebra-se o Dia da Consciência Negra.  

A data, coincide com o dia da morte de Zumbi dos Palmares, grande líder quilombola e um dos principais símbolos da luta negra no Brasil. O marco foi instituído oficialmente pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011.  

Para falar sobre essa data, racismo e bullying, principalmente com crianças e na sala de aula, convidamos a professora, mestre em Educação pela UFRJ, Jéssica Valentim, do @abcdajessica, para responder algumas perguntas. 

Na entrevista, a professora, especialista nos saberes e fazeres da alfabetização da rede pública de ensino da cidade do Rio de Janeiro, conta um pouco da sua experiência como mulher preta. Além de explicar como lidar com diversas situações na escola e com os estudantes e dicas de como trabalhar e combater o racismo e o bullying, diariamente, na escola. 

  1. Como você lida com o bullying na sala de aula com seus estudantes? 

Toda situação de conflito que ocorre na sala de aula é enfrentada pelo diálogo e reflexão. Busco saber da criança que “pratica” o bullying, as razões que a levaram a fazer isso. Muitas dessas crianças reproduzem na escola aquilo que vivenciam nos diferentes espaços de socialização que estão inseridas. Contudo, elas não têm consciência que tais atitudes ofendem, machucam, agridem. Busco também ouvir de quem “sofreu” o bullying, seus sentimentos em relações às agressões que vivenciou. Este diálogo permite que os envolvidos reflitam conjuntamente, pratiquem a empatia e (r)elaborem outras maneiras de agir e pensar sobre pessoas, assuntos e situações. 

  1. E o preconceito racial? Como combater e lidar com essas situações na escola?  

A escola é uma instituição que acolhe e vivencia a diversidade que está presente na sociedade e nas relações humanas. Ao mesmo tempo, ela convive com pessoas que carregam consigo compreensões distintas e múltiplas acerca dessa diversidade. Há quem as acolha. Há quem as rejeite. Sendo assim, é papel da escola promover espaços/tempos de discussão, reflexão e produção de conhecimento em uma perspectiva multicultural e inclusiva. Para tratar o preconceito racial na escola, é importante garantir esse movimento adequando-o ao perfil da turma e ao contexto que a situação aconteceu. 

  1. Como você ensina o preconceito racial para as crianças? 

Costumo dizer que, muitas vezes, o racismo que presencio na escola não é direto – pelo menos no público que eu atendo. As crianças reproduzem falas que estão habituadas a ouvir, replicam atitudes naturalizadas no seu dia a dia e agridem para inferiorizar o outro porque entendem que aquela postura o inferiorizou primeiro (em situações ocorridas na escola e fora dela). Em outras palavras, é aquele deslocamento de oprimir alguém com a opressão que vivencia – e sabe que machuca. Em outros momentos, eu percebo o racismo pela reprodução inconsciente de falas que estão circulando entre nós, como por exemplo, “seu cabelo é ruim”, “isso é coisa de preto” etc.  

Do ponto de vista prático, abordo o preconceito racial a partir de conversas, discussão de situações do cotidiano, leituras que protagonizem as diferenças e possibilitem representatividade, exibição de vídeos, registros escritos, desenhos, jogos e brincadeiras. 

  1. Na história de Felicidade não tem cor, o personagem principal, Fael, passa por um momento de não aceitação e revolta pela sua cor de pele, infelizmente, algo comum para qualquer pessoa preta. Você teve esse momento em alguma fase da sua vida?  

Quando criança, não tive uma trajetória referenciada e esclarecida com as questões que uma pessoa preta enfrenta em razão do capital cultural que estava inserida. Contudo, e apesar disso, não passei por um processo de não aceitação consciente. Percebia que tudo que via exaltado como belo, necessário e importante não correspondia à minha cor. Por outro lado, eu não tinha uma dimensão crítica acerca disso. Esta pauta chegou até mim quando já era adolescente, em um processo de profissionalização que o Curso Normal (formação de nível médio que habilita o professor para lecionar na Educação Infantil – atual Curso Magistério) me permitiu. Então, foi a partir daí que eu tive noção do quão complexo é viver nesse tempo presente, cujas referências pretas sofrem um silenciamento literário, midiático, social, intelectual e humano! Cabe destacar o papel fundamental da Educação nesse processo. 
 
 

  1. E na sala de aula, já teve de enfrentar algo parecido com algum dos seus estudantes? Como superaram isso? 

Sempre! Em muitos casos, a não aceitação já é identificada logo no começo do ano, quando normalmente trabalhamos projetos escolares sobre a identidade e representação de si. Muitos estudantes, ao se representarem por meio de desenho, atribuem um fenótipo distinto daquele que o constitui fisicamente. Com isso, proponho atividades que colocam em evidência o autoconhecimento. As crianças fazem esse deslocamento de representarem exatamente aquilo que veem e não mais aquilo que eles entendem como belo, padrão, interessante. Nesse movimento, a literatura com protagonismo preto vai ao encontro desse trabalho e reforça a necessidade de os estudantes conviverem com referências que eles dialoguem e se identifiquem. 

  1. Você é uma mulher preta, como foi a sua jornada de autoaceitação? 

Eu não tinha noção sobre a pauta da mulher preta. Mas fazendo um regresso à minha história, percebo que a minha jornada de autoaceitação vem acontecendo no sentido de me sentir bem com as minhas características físicas. Hoje, eu não questiono os traços que meu nariz e minha boca têm, eu escolhi ter um cabelo natural e achá-lo lindo do jeito que é. Então, eu tenho percorrido uma jornada nesse sentido: estar bem fisicamente. Óbvio que não é um processo linear e ininterrupto. Sobretudo, porque somos bombardeados diariamente com padrões que correm longe do universo preto. 

  1. O livro Felicidade não tem cor, pode ajudar a criança a reconhecer e valorizar sua própria história? 

Sim, pois ele narra os conflitos e as situações que as crianças vivenciam nos espaços que socializam. 

  1. No livro, Fael busca ajuda para descobrir como Michael Jackson deixou de ser um homem preto. Sabemos da importância de figuras públicas e personalidades que inspiram as crianças, então quais personalidades você apresenta a elas para que se sintam representadas? E qual é a sua inspiração? 

As crianças gostam bastante das pessoas que aparecem na mídia e que devolvem entretenimento alusivo à realidade em que estão inseridas – como é o caso do jogador Neymar, Gabigol, alguns cantores de funk e apresentadores. Eu percebo que essas figuras são referências de sucesso do ponto de vista econômico. Muitos estudantes dizem: “- Tia, quero ser rico como o Neymar!”.  

Equilibrando um pouco essas referências de sucesso através da riqueza, que é legítimo vislumbrar, eu tento refletir com as crianças que muitas dessas histórias de vida são baseadas no estudo, na prática esportiva e na persistência de buscar condições melhores para si, ou seja, o dinheiro é o retorno de um investimento educacional, esportivo, profissional. 

Particularmente, eu gosto das atrizes Taís Araújo e Elisa Lucinda, do cantor Milton Nascimento, da dermatologista Katleen Conceição e da escritora Djamila Ribeiro. 

  1. Você pode dar dicas e sugestões para os professores que nos leem de como trabalhar o Dia da Consciência Negra na sala de aula? 

Acredito na importância de se trabalhar com o Dia da Consciência Negra. Contudo, defendo que esse trabalho deve ser articulado pela escola durante todo o ano. Sugiro, portanto, muito debate sobre o tema, leitura de livros com autores pretos, exibição de produções audiovisuais (filmes, curtas, documentários, reportagens), trabalho colaborativo com as famílias e a comunidade escolar, entrevistas e palestras com personalidades/famílias da comunidade, mostra de danças, sarau, vernissage, peças teatrais… 

  1. Como a história do livro pode ajudar o professor a trabalhar essa temática na sala de aula? 

O livro Felicidade não tem cor é a narrativa sobre Fael, um menino que sofre bullying na escola por ser preto. Esta história, infelizmente, é uma realidade. Como qualquer realidade, ela cria identificação com quem a conhece. Na minha opinião, é um interessante ponto de partida para trabalhar tal temática, visto que os estudantes se reconhecem nela e podem falar desse lugar. 

  1. A literatura pode ser uma grande aliada para desenvolver e instruir assuntos mais difíceis e complexos para as crianças, como preconceito racial e desigualdade social? 

Sem dúvida! O papel da literatura é imprescindível na formação do estudante. Pensando especificamente na abordagem do preconceito racial, as histórias servem para retratar muitas situações que a criança vive, mas não consegue dizer – seja porque não tem consciência ou por vergonha de narrá-las. Assim, elas assumem esse lugar de deslocamento e permitem que cada um se coloque com confiança. 

  1. Qual a importância de representatividade negra em livros de literatura com personagens de destaque? 

Fundamental! Realizar leituras com protagonismo preto coloca em evidência a pessoa preta que ocupa espaços distintos e pode ser o que quiser. A literatura, nesse sentido, carrega a responsabilidade de gerar representatividade e interferir na construção de ideias que a criança terá sobre as pessoas, a sociedade e as relações entre pessoas. Quando eu leio uma versão em que a Chapeuzinho Vermelho é preta e penteia o leão com tranças, eu estou me aproximando das características físicas predominantes da minha turma. Por consequência, isso causa encantamento nos estudantes, que veem um pouco de si em algo prazeroso, belo, interessante e que está em posição de destaque. 

  1. Quais atividades são importantes desenvolver ao longo do ano para educar as crianças sobre as individualidades de cada ser humano e o combate ao preconceito racial e ao bullying?  

São muitas as possibilidades! Sugiro sempre debates, leituras em diferentes formatos (coletiva, compartilhada, em dupla), jogos, brincadeiras, vídeos, pesquisas, atividade colaborativa com as famílias e comunidade escolar. 

  1. A escola tem um papel importante na desconstrução do racismo. Quais ações ela pode desenvolver, desde a idade mais tenra, para formar cidadãos mais justos e conscientes? 

Desconstruir o racismo é um movimento complexo porque envolvem diferentes questões enraizadas na nossa história. Mesmo assim, acredito que o papel da escola é possibilitar ao estudante refletir sobre si, sobre o outro e sobre as relações humanas. Por consequência, trabalhamos a empatia, a solidariedade, a responsabilidade e o compromisso de cada um para construir espaços/tempos inclusivos, igualitários e justos. 

  1. Para finalizar, qual é a sua opinião sobre o racismo na Educação nos dias de hoje, tanto pelo seu olhar como uma professora negra (e de escola pública), quanto para as relações dos estudantes e da comunidade.  

Primeira coisa a ser dita é: o racismo existe e não é vitimização. Nós carregamos os efeitos de um dos mais vexatórios e cruéis eventos da humanidade, que é a escravidão. Esta é a realidade. Esta é a triste realidade. Hoje, eu percebo dois movimentos na sociedade. O primeiro deles é a negação da existência do racismo e da dívida que a escravidão deixa para uma população permanentemente segregada, humilhada e em condições desiguais de sobrevivência. O segundo deles é o movimento de resistência a tudo isso que uma pessoa pobre, preta e favelada enfrenta diariamente. 

A escola, como instituição formativa, tem o dever de ampliar e focalizar sistematicamente o debate sobre o racismo. O caminho de partida é a Educação de pessoas. Como já dizia o nosso necessário patrono Paulo Freire: “Educação não muda o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas mudam o mundo”. 

Clique aqui e conheça a jornada de autoaceitação de Fael, um garoto que sofre bullying por causa da cor de sua pele em Felicidade não tem cor, livro de Júlio Emílio Braz. 

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