Entrevistando

ENTREVISTA COM RITA CARELLI E DANIEL MUNDURUKU SOBRE CULTURA INDÍGENA, REPRESENTATIVIDADE E A NECESSIDADE DE SE TRABALHAR O TEMA NOS CURRÍCULOS ESCOLARES.

Por FTD Educação

Estimativa de leitura: 14min 53seg

12 de abril de 2022

De que forma devemos trabalhar a cultura indígena na sala de aula? A abordagem feita pelas escolas é o bastante para ensinar os estudantes sobre as histórias dos povos ancestrais? A partir dessas questões, convidamos os autores Rita Carelli e Daniel Munduruku para exporem seus pontos de vista sobre como deve ser trabalhado o tema nas escolas a fim de desmistificar a imagem estereotipada desses povos. As entrevistas foram feitas individualmente. Começaremos por Rita Carelli. 

Rita, conte-nos um pouco sobre sua formação e trajetória como escritora.  

Apesar de ter tido uma formação em Letras, a minha vida profissional começa como atriz. É só em 2014, com a coleção Um dia na aldeia, que a minha trajetória como escritora tem início. Essa trajetória está intimamente ligada à minha experiência junto aos povos indígenas. É dessa experiência que eu queria falar quando comecei a escrever. Eu me considero uma sortuda por ter vivido com os meus pais em diferentes aldeias indígenas, durante a minha infância, uma experiência que sempre considerei preciosa demais para ficar guardada só comigo. E foi escrevendo que encontrei a forma de compartilhá-la. 

Por ter vivido parte da sua infância entre os povos indígenas, acompanhando seus pais, como você analisa o seu olhar em relação à cultura e às tradições indígenas? Como esse olhar se reflete nos seus livros?  

Meu amor pelas histórias certamente vem da minha infância com os povos indígenas, para quem as histórias estão no centro da vida. São contadas e recontadas o tempo todo. Elas organizam as relações, os comportamentos e mesmo a forma de estar no mundo. Acredito que o fato de eu ter ido ainda criança para diferentes aldeias tenha marcado a minha forma de ver a vida — esse olhar curioso e atento sobre as outras culturas. Há quem diga que a minha escrita possui um forte traço de alteridade, quando se refere às culturas indígenas. Não sei. O que eu sinto é que não poderia fazer de outra forma. Escrevo sem julgamentos e, com certeza, com um profundo amor por tudo o que vi e vivi. 

A partir da sua percepção e vivência junto aos povos indígenas, como analisa o dia 19 de abril e as “comemorações” do Dia do Índio? A data pode ser utilizada para trazer novos debates sobre os povos indígenas nas escolas e na sociedade?   

A origem dessa data, 19 de abril, que ficou conhecida como o Dia do Índio, está relacionada a um protesto dos povos indígenas no continente americano, ainda na década de 1940. Isso aconteceu num congresso organizado no México, que se propôs a debater medidas para proteger os indígenas no seu território. O que temos aqui, portanto, é uma data importada desse país-irmão. Ela é importante, claro, tem uma origem muito forte, serve para dar visibilidade às questões indígenas e é um pretexto para, nas escolas, as crianças mergulharem nas culturas indígenas do nosso país. O problema é que um único dia no calendário é largamente insuficiente para cumprir a lacuna que existe na educação formal do Brasil sobre o aprendizado dos povos indígenas. É preciso usar essa data e levar a discussão para muito além dela, a fim de realmente garantir direitos para as populações indígenas e aprofundar o conhecimento que a sociedade nacional tem delas.  

O livro Minha família Enauenê narra parte da sua infância na aldeia indígena dos Enauenê-Nauê, no estado do Mato Grosso, apresentando costumes e a cultura daquele povo, como os papéis sociais rígidos, com atividades para meninos e para meninas. Como o livro pode ser uma ferramenta para abordar questões relacionadas aos papéis sociais, à divisão do trabalho e à diversidade cultural com os jovens, tanto em sala de aula como em casa?  

Eu acredito que esse é o papel dos educadores! Transformar em ferramenta aquilo que nós fornecemos de matéria-prima — os livros com nossas vivências, questionamentos, intimidade e tudo aquilo que vimos e aprendemos em nossas andanças. Mas, sem dúvida, acho que o livro Minha família Enauenê pode ser um bom ponto de partida para se discutir diversidade cultural com os jovens. 

Nos últimos anos temos percebido um movimento do mercado editorial para lançar mais livros que abordem a cultura indígena. Como você analisa esse fomento à literatura e às histórias dos povos originários?  

Acho maravilhoso o crescente interesse do mercado editorial e, vale dizer, da sociedade nacional em relação às culturas indígenas. Há toda uma nova geração de escritores indígenas com uma produção maravilhosa à disposição do público. Ler esses autores é, sem dúvida, a forma mais interessante de se aproximar de suas culturas, assim como apreciar o trabalho dos artistas visuais, cineastas e pensadores indígenas, e por aí afora.   

Você não é indígena, mas encontrou nessa cultura espaço e inspiração para publicar livros com temas relativos aos povos originários, como a coleção Um dia na aldeia, que coordenou e para a qual escreveu e ilustrou alguns títulos, entre eles A história de Akykysia, o dono da caça. Qual é o papel dos não-indígenas e da sociedade brasileira como um todo no fomento e estímulo à cultura e à literatura indígenas?   

Eu talvez me situe nesse território que Ailton Krenak chama de ‘alianças afetivas’. São pessoas não-indígenas, mas que resolveram usar suas vidas para a difusão das culturas indígenas e a luta por suas pautas junto à sociedade nacional. Daniel Munduruku disse, certa vez, que o termo ‘parentes’, que os indígenas usam para se chamarem carinhosamente uns aos outros, mesmo de etnias distintas, pode, às vezes, ser estendido para não-indígenas que abraçaram as suas lutas e as suas causas. E disse que o termo se aplicaria ao meu caso, o que muito me honra. Então, fui adotada nessa categoria de parente estendido. Acho que os meus livros não pretendem falar pelo lugar de outro. A coleção Um dia na aldeia é uma parceria estreita entre os realizadores indígenas e nós, autoras e ilustradoras. Ela se baseia num projeto de mais de 35 anos, o Vídeo nas aldeias, que realiza um largo percurso de respeito e entendimento com as comunidades com as quais trabalha. Já Minha família Enauenê e o meu mais recente romance, Terra preta, partem de um ponto de vista de uma personagem não-indígena que descobre essa cultura e se aproxima dela com toda a humildade da sua ignorância. Acho que esse é o diferencial dos meus livros. Não pretendo me passar pelo que não sou, mas convido os leitores não-indígenas a pegarem na minha mão para fazermos um passeio por esses universos indígenas tão ricos.  

A tradição oral dos povos originários está intimamente ligada ao meio ambiente: animais, a floresta e os fenômenos da natureza são personagens dos contos, lendas e mitos indígenas. Essas histórias podem ser ferramentas para falar de sustentabilidade em sala de aula e em outros espaços de Educação?  

Tenho um certo problema com o termo ‘sustentabilidade’. Acho que ele serve, muitas vezes, de chancela para continuarmos na mesma lógica exploratória do planeta, apenas de maneira um pouco menos voraz. Eu acredito que a ciência dos povos indígenas nos leva muito mais longe do que isso. Fala realmente de uma integração com os outros seres viventes e com aquilo que chamamos de meio ambiente. Seria preciso escutar, com muito mais atenção, aquilo que os povos indígenas estão nos falando para mudar realmente, de forma radical, a nossa relação predatória com o planeta. Acredito, sim, que a produção dos indígenas pode ser um importante ponto de partida para revermos a nossa ação na Terra.  


Rita Carelli

Rita Carelli nasceu em São Paulo, em 1984, e viveu boa parte de sua infância entre povos indígenas, acompanhando seus pais em filmagens e pesquisas. Publicou oito livros, com destaque para a coleção Um dia na aldeia, que coordenou e para a qual escreveu e ilustrou alguns títulos. Entre eles está A história de Akykysia, o dono da caça, que foi selecionado pelo catálogo White Ravens da Biblioteca de Munique e foi contemplado com o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Além de escritora e ilustradora, Rita é atriz formada pela Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, em Paris. Foi protagonista, ao lado de Irandhir Santos, do longa-metragem Permanência, de Leonardo Lacca, filme que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no 19º Cine PE e no 9º Festival de Cinema de Triunfo. Pela FTD, publicou Minha família Enauenê (2018).  


Seguindo agora com o Daniel Munduruku:

Daniel, você completou 25 anos de atuação na literatura, em agosto de 2021. Como foi sua trajetória e evolução como escritor nesse período?   

Eu realmente tive a honra de completar 25 anos como escritor. Durante todo o mês de agosto fiz lives apresentando meus livros para o público, contando curiosidades e refletindo sobre o papel da literatura na construção da identidade brasileira. Minha avaliação é que fui amadurecendo com o passar do tempo, aprendendo a ouvir as inquietações dos meus leitores e procurando me renovar nas narrativas que desenvolvi ao longo desse período. Enfim, creio que hoje sou um escritor bem mais maduro e atento aos anseios dos leitores.  

Dia 19 de abril é o Dia do Índio. Qual é sua visão sobre essa data: deve ser comemorada ou questionada nas escolas?   

Tenho defendido que é preciso revisar a comemoração do dia 19 de abril. Para isso costumo perguntar: qual é o “índio” que se comemora nesse dia? Respondo: uma ficção. Esse índio não existe. É preciso que as instituições escolares repensem e atualizem seus conhecimentos sobre os povos indígenas para que consigam superar a armadilha armada pela narrativa hegemônica, que sempre desqualificou os povos indígenas. O que existe no Brasil é uma diversidade que se expressa nas diferentes culturas originárias. Essa diversidade precisa ser trazida para o contexto da sala de aula para que nossas crianças sejam educadas com uma visão de tolerância e respeito. Se nossas escolas realmente quiserem fazer a diferença, têm que romper com a visão etnocêntrica que ainda alimenta o nosso sistema educacional. Dia do Índio, nunca mais. 

Quais novos debates sobre a população e a cultura indígenas podem ser levantados no dia 19 de abril?   

O tema indígena está ligado a outros vários temas que formam um conjunto só. O tema da identidade brasileira precisa ser trazido à tona o tempo todo. Precisamos romper com a ideia de que ser brasileiro é negar sua ancestralidade. Ao contrário, é preciso dizer que ser brasileiro é pertencer, é ser comprometido com este território e saber respeitar nosso patrimônio imaterial. O tema ambiental pode ser trazido como parte das celebrações da semana dos povos indígenas. Somos natureza, todos nós igualmente. É preciso apresentar a natureza como extensão do que somos, como fazem os povos originários. O tema da presença indígena na sociedade contemporânea é superimportante. Assim como a temática dos indígenas em contexto urbano. 

Quando usamos o termo “índio”, há uma simplificação estigmatizante de um coletivo que engloba centenas de povos e línguas diferentes no território brasileiro. Segundo o prefácio do livro Vozes ancestrais, há 307 povos indígenas, que falam em torno de 275 línguas, sem contar 60 grupos ainda escondidos pelas florestas. Como mudar a percepção da sociedade e ampliar a visão em relação a essa diversidade de povos e à pluralidade? 

Mudar o uso do termo “índio” para se referir aos povos originários é um começo. Ela é uma palavra que enrijece a diversidade e a encapsula nos estereótipos reproduzidos pelas escolas. Outra providência é tornar a literatura escrita por autores indígenas uma realidade nos currículos escolares. A leitura dessa literatura vai trazer a visão dos povos indígenas sobre o mundo e a realidade que vão criar uma nova consciência em nossas crianças e jovens.   

No prefácio do Vozes ancestrais você escreve que “os povos indígenas contam histórias não só para se divertir, mas também para ensinar”. Como você se sente sabendo que seus livros são lidos por muitos brasileiros? Você recebeu algum retorno de estudantes e professores impactados pelas suas obras?   

Eu me sinto muito orgulhoso. Não tanto por ser um escritor reconhecido, mas por me sentir um educador que escreve e que proporciona uma visão da realidade vivida pelos povos originários de forma lúdica e instrutiva. O mais interessante é que recebo muito retorno do público adulto, de pais e professores. Isso me deixa ainda mais feliz e realizado porque mostra que estou atingindo todos os públicos. Isso se manifesta no tanto de trabalhos acadêmicos que utilizam minhas obras como referência, na presença de textos meus em livros didáticos, nos concursos vestibulares ou mesmo nas citações nas redes sociais. Muito feliz!  

Nos últimos anos temos percebido um movimento do mercado editorial para lançar mais livros que abordem a cultura indígena. Pela FTD Educação, além de Vozes ancestrais, você também lançou Um estranho sonho de futuro: casos de índio. Como você analisa esse fomento à literatura indígena?   

Não tenho dúvidas de que o mercado editorial é fundamental para dar visibilidade aos saberes ancestrais. No entanto, sei que isso faz parte de um interesse no potencial comercial que a escrita indígena carrega. Vira, assim, uma parceria muito interessante e importante, porque faz a literatura indígena chegar a todos os cantos do Brasil. Além disso, tem a questão da qualidade literária dos textos indígenas. Eu realmente acho que há uma novidade muito legal e criativa que essa literatura traz.  

Nas aldeias indígenas, contar histórias ainda é muito comum; é o modo de os mais velhos transmitirem as tradições aos mais novos. E muitas histórias de tradição oral guardam relação estreita com elementos da natureza, como a floresta, os animais e os fenômenos meteorológicos. A literatura indígena pode ser uma ferramenta importante para transmitir conceitos sobre meio ambiente e abordar temas de sustentabilidade, tão em alta na atualidade?   

Com certeza. O meio ambiente é um dos temas atuais mais relevantes. A novidade da literatura indígena é justamente a apresentação de uma visão completamente integrada do ser humano com a natureza. Ela nos lembra que somos partes e não donos, e que o que afeta a terra, afeta também os filhos da terra. Ou seja, cada um de nós. 

Qual é o impacto da internet e das redes sociais na cultura indígena e entre os jovens nas aldeias? Como as novas tecnologias podem ajudar a ampliar as vozes dos povos originários?  

Sou partidário da ideia de que a cultura precisa se atualizar e que os povos indígenas são seres do presente. Portanto, usar a tecnologia é nossa forma de sermos fiéis às lutas dos ancestrais. Usar as tecnologias para difundir nossa cultura não é abandonar a ancestralidade, mas um certificado de competência que nossos povos dão à sociedade brasileira.  

Falando como educador, como a Literatura, em especial a literatura de povos originários, pode ajudar a construir um projeto de identidade para o Brasil?   

Os povos indígenas têm sobrevivido apesar da negação que se fez ao longo de toda a história brasileira. Manter-se vivo é, a meu ver, o grande atestado que nossa gente passa à sociedade. Viver ou sobreviver é a garantia de manter o patrimônio imaterial e material que é, em última análise, de todo o povo brasileiro. Isso tudo está retratado na escrita literária e, quem tem condições para isso entender, certamente conseguirá descobrir a força que elas trazem para o cenário nacional. É isso que me anima a continuar escrevendo e produzindo histórias para mexer com o imaginário do povo brasileiro.  


Daniel Munduruku

O escritor Daniel Munduruku pertence ao povo Munduruku, do estado do Pará. Graduado em Filosofia, tem licenciatura em História e Psicologia. Tem doutorado em Educação pela USP e pós-doutorado em Literatura pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. É diretor-presidente do Instituto UK’A – Casa dos Saberes Ancestrais e Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República na categoria da Grã-Cruz, a mais importante honraria oficial dada a um cidadão brasileiro na área da cultura. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, entre eles o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Érico Vanucci Mendes (outorgado pelo CNPq) e o Prêmio Tolerância (outorgado pela Unesco). Pela FTD, publicou Um estranho sonho de futuro: casos de índio (2004) e Vozes ancestrais (2016).  


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