Entrevistando

Entrevista com o autor e ilustrador Júlio Emílio Braz

Por FTD Educação

Estimativa de leitura: 10min 27seg

13 de maio de 2022

Júlio Emílio Braz conta um pouco mais sobre a profissão que escolheu “por acaso” e que fez dele um dos mais respeitados autores da literatura infantojuvenil brasileira. A conversa também passeia pelas suas obras que abordam temas sociais de extrema importância. Por fim, falamos sobre sua visão da literatura negra e importância do movimento. Tenha uma excelente leitura! 

Júlio, conte-nos um pouco da sua trajetória como escritor: por que começou a escrever e como foi a transição dos quadrinhos de bangue-bangue, sob pseudônimo, e dos roteiros de televisão para a literatura infantojuvenil? 

Minha trajetória como escritor foi feita a partir do inesperado, ou seja, eu não planejei nada. Eu escrevo praticamente desde que aprendi a escrever (eu já sabia ler antes, por conta de livros que ganhava principalmente de minha mãe e de minha tia, as duas Geraldas mais importantes de toda a minha existência – o nome das duas era idêntico, minha mãe e a minha tia por parte de pai). Em muitos momentos de minha infância e adolescência, eu era o enfant gaté de minhas professoras de Português, e inclusive o primeiro trabalho remunerado aconteceu na adolescência, quando escrevia redações para colegas que não gostavam de escrever redações. No entanto, a carreira efetivamente, ou seja, ser remunerado pelo meu trabalho, aconteceu em meados de 1980, quando, desempregado e estimulado por um amigo de meu irmão, fui parar na Editora Vecchi, que naqueles tempos publicava várias revistas de quadrinhos de terror e precisava de roteiristas. Levei minha vasta produção de quadrinhos, mas nenhuma delas interessou, exceto um personagem histórico (Pedro Salvaterra, um herói pernambucano que combatia os invasores holandeses em meados do século XVII em Recife). Como as publicações eram de terror, o editor naquela época, o grande Otacílio Barros, me sugeriu transformar o personagem em algo que o aproximasse das revistas da editora. Fizemos um brainstorm vapt-vupt e ele se tornou Jesuíno Boamorte, o mesmo combatente contra os holandeses, mas que traído por um companheiro de lutas, é preso e morto pelos invasores. Seu corpo é resgatado por uma velha ama de leite que num pacto sinistro com forças sobrenaturais, lhe devolve à vida como um morto-vivo que continua sua luta contra os holandeses. Foi sucesso imediato e eu escrevi uma série com o personagem, publicada na revista Spektro. A partir daí, escrevi outros roteiros para a Vecchi e outras editoras dedicadas ao gênero no Rio, mas principalmente em São Paulo. Mais adiante, por intermédio de outro amigo, comecei a escrever livros de bolso de bang-bang, algo que, neste e em outros gêneros, fazia muito sucesso, literatura de banca de jornal muito popular até meados dos anos noventa. Isso me levou a escrever uma quantidade assombrosa de livrinhos sob 39 pseudônimos diferentes. Posteriormente, fui parar na equipe de sketchistas do programa “Os Trapalhões”, na TV Globo, e finalmente cheguei à literatura infantojuvenil em uma de minhas frequentes viagens a São Paulo. 

O senhor tem mais de 180 livros publicados, boa parte voltada para o público infantojuvenil. Suas obras juvenis abordam uma temática social, trazendo assuntos complexos e delicados, como alcoolismo, violência, preconceito, pobreza etc. O primeiro livro nessa linha é Saiguairu, de 1988, com o qual ganhou o prêmio Jabuti de Autor Revelação. Por que escolheu essa abordagem para falar com os jovens? 

A escolha pela abordagem social na maioria dos livros infantojuvenis publicados tem, por um lado, raízes profundas em uma de minhas escolhas profissionais, pois sou professor de História (História é minha segunda paixão depois da Literatura). Por outro lado, sempre acreditei que, independentemente da idade, deveríamos ter acesso a todos os muitos aspectos da vida, inclusive os temas mais controversos e mesmo desagradáveis da existência humana. Só se transforma ou se enfrenta os problemas da vida quando os percebemos como tal. A literatura não se presta ao papel de manual ou panfleto sob modos e maneiras de viver a vida, mas pode, mimetizando-a, servir de ponto de reflexão e inflexão sobre esses amplos aspectos de nossas vidas. Hoje, mais do que nunca, isso é necessário, pois vivemos em uma sociedade onde a profusão de conhecimento e informação nos alcança com a velocidade que não nos permite a necessária profundidade tão valiosa à compreensão de qualquer assunto. Eu chamo de ignorância por excesso de informação. Não há assunto que não possa e não deva ser discutido por qualquer ser humano, independentemente de sua idade. 

De onde vem a inspiração para escrever sobre temas sociais? 

Eu mesmo gostaria de dar uma definição clara de inspiração. Eu não tenho uma informação exata e inquestionável, mas tenho uma pista bem viável: seres inteligentes, pensantes e consequentemente, questionadores, são invariavelmente acumuladores de informação e conhecimento. Sou fruto de todos os livros, revistas, jornais e tudo o que se possa ser lido, a começar pela própria vida, e essa acumulação ontológica enche a minha cabeça de ideias que meu interesse em contar histórias me leva a transformar em ingredientes de novas histórias. Além disso, tenho ouvidos para ouvir (adoro ouvir tudo e qualquer coisa, a começar pela conversa dos outros, e por conta disso, sou apaixonado por múltiplas formas de transporte público, onde tem gente, ou seja, imensos depositários de histórias. Marc Bloch, destacado historiador de Escola de Annales, costumava dizer que historiadores eram ogros, pois se “alimentavam” de carne humana; eu acredito que escritores também, pois o humano de cada um alimenta minha sede de criar novas e novas histórias). Também tenho olhos para efetivamente ver e não apenas ver o mais nietzscherianamente possível (e não apenas olhar) e em terceiro lugar, encontro na minha própria existência amplos territórios de memória de onde pinço lembranças de fatos e pessoas que conheci. 

Enquanto houver vida viverei, seu primeiro livro lançado pela FTD Educação, em 1992, completa 30 anos em 2022. A obra aborda o tema do preconceito e da ignorância em relação aos portadores de HIV. Para o senhor, essa temática ainda é atual ou esse tipo de preconceito já foi digerido pela sociedade, trazendo outras abordagens para esse debate? 

Infelizmente, pelo menos em termos brasileiros, autores que se dedicam à abordagem de temas sociais vivem a desagradável situação de serem constrangedoramente atuais na maioria das vezes. O pouco interesse em educação e leitura nos legou uma sociedade que não evolui com facilidade e em muitos casos, até involui. Temas como injustiça social, preconceitos de todas as matizes, entre outros problemas, eram atuais quando escrevi e publiquei Enquanto Houver Vida, Viverei, e infelizmente ainda o são. Se falamos menos da AIDS, não é porque o preconceito desapareceu, mas simplesmente por duas razões: a AIDS enveredou pela rotina de uma pseudonormalidade e perdeu um certo protagonismo da discussão social, substituído por temas mais recentes, como racismo, feminicídio, e claro, o maior deles, a pandemia de Covid, com seus amplos desdobramentos em termos de involução civilizacional (estamos debatendo até Terra plana, quando há mais de três mil anos, um grego chamado Eratóstenes provou que o planeta era redondo com alguns pedaços de pau e muita inteligência). 

Muito premiado no exterior, o livro Crianças na escuridão, lançado há mais de 30 anos e que faz parte do catálogo da FTD, recebeu, em 1997, pela versão alemã, o prêmio Austrian Children Book Award, na Áustria, e o Blue Cobra Award, do Swiss Institute for Children’s and Youth Media, na Suíça, e menção honrosa no Prêmio Juvenil de Berlim (Alemanha, 1998). O livro denuncia, sem qualquer sutileza, a realidade nua e crua de muitas crianças e jovens carentes que sobrevivem nas grandes cidades brasileiras. Como o senhor analisa a atualidade da obra, tendo em vista a realidade das ruas brasileiras em 2022? 

Crianças na Escuridão envereda pelo mesmo caminho: não apenas temos cada vez mais crianças abandonadas nas ruas de nossas cidades, como agora, se novidade há, é a de que, diferentemente dos anos noventa, quando o livro foi escrito e publicado, hoje elas nascem, crescem e morrem nas ruas, valendo salientar a situação mais infame em tudo isso, qual seja, à mercê da indiferença da quase totalidade de nossa sociedade e muito precocemente, pois grande parte de nossa sociedade ainda acredita, como dizia o presidente (se não me engano) Washington Luís, que “a questão social no Brasil é um caso de polícia”, e deve ser resolvida a bala e através do arbítrio exclusivamente policial e seus vexatórios subprodutos (milicianos, justiceiros de ocasião e obviamente, políticos de mente curta e discurso populista). Eu sinto vergonha da “atualidade” de Crianças na Escuridão, apesar de ele ser meu livro favorito, pois ela atesta nossa falência como seres humanos e sociedade. 

Recentemente, a FTD anunciou uma parceria com a Accord Literary, uma agência literária internacional especializada em escritores emergentes africanos. O Brasil, segundo maior país negro do mundo, precisa de mais histórias africanas, contadas por escritores africanos? Por quê? 

Somos uma sociedade multiétnica, queiramos ou não, gostemos ou não, e a elite, que é branca e de origem europeia, não tem como ignorar isso, pois no caso da população afrodescendente, somos pelo menos a maioria numérica. Em sociedades multiétnicas não deve existir o predomínio de uma etnia sobre outras, mas pelo menos a convivência mais ou menos harmoniosa entre todas (realisticamente: objetivo a ser perseguido mas nunca inteiramente alcançado). A narrativa contada por afrodescendente se insere como dado de importância e relevância de sua participação na construção desta sociedade e no papel que deve e pode desempenhar. A literatura se insere num processo mais amplo e imprescindível de construção de identidade e aquisição e consecução de conhecimento necessários à ocupação de espaços nesta mesma sociedade. Somos obra de muitas maneiras de lidar com a vida e isso transparece necessariamente na cultura que produzimos, daí a sua importância e necessidade. Somos a deliciosa mistura de correntes civilizatórias autóctones, europeias, africanas e asiáticas, e cada contribuição deve ser reconhecida e valorizada. 

Como a literatura negra no Brasil pode ajudar na construção de uma identidade para o país? 

A literatura é retrato do que somos, de onde vivemos, mas fundamentalmente, do que pensamos. A literatura produzida por afrodescendentes é instrumento óbvio e identitário para as gerações de negros que apenas recentemente começaram a se ver apresentadas e representadas nos meios de comunicação e no cotidiano social brasileiro, longe do papel social de subalternidade a que foi relegado há séculos pela escravização de seus antepassados. Se o mote da publicidade advoga que “o que não é visto, não é comprado”, a autoria negra é necessária para que naturalizemos o protagonismo afrodescendente, debelemos uma incômoda invisibilidade de séculos que priva aos jovens seus heróis e personalidades e ao mesmo tempo, nos confina a determinados espaços de atuação onde a produção intelectual e científica via de regra é amesquinhada ou simplesmente escamoteada do conhecimento da população negra (Antônio e André Rebouças, Juliano Moreira, Virgínia Bicudo, Milton Santos, Luís Gama…você sabe quem são ou quem foram?). Estou citando apenas alguns que deveriam ser notórios. Sei que somos relevantes no esporte, na culinária, nas artes em geral, e isso é tanto verdade quanto importante, mas há muito mais. A literatura pode e deve desvelar essa informação. Se você consegue ver, você compra a ideia de que você é bem mais do que dizem sobre e para ti. A singularidade e autonomia do ser em sua plenitude intelectual define o seu papel social no Brasil e em qualquer parte do mundo, onde o negro já deixou de ser exótico há muito tempo. 

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